Segundo a 6ª edição da Retratos da Leitura no Brasil, o país perdeu quase 7 milhões de leitores em quatro anos.
Hoje eu poderia propor uma data comemorativa, como acontece com tudo que é negligenciado pela sociedade, mas já temos várias e não adiantou.
Só o fato de termos uma única pesquisa sobre o assunto no Brasil já diz muito: neste país quase ninguém se importa com a leitura.
Então, vamos com a primeira pergunta: se 53% da população não lê, por que vou escrever sobre a queda livre da leitura no Brasil?
O cachorro entrou na igreja porque a porta estava aberta. Então, escrevo porque ainda há lugares onde se pode escrever. Ainda há 47% de leitores.
Se a maioria não lê, o problema não é meu.
Pelo contrário! Com menos gente disposta a ler, a curiosidade, a capacidade de concentração, o pensamento crítico, a empatia, o vocabulário, a memória, entre tantas outras habilidades que a tecnologia não substitui, serão um diferencial.
Então, vamos aproveitar essa vantagem competitiva, mas ao mesmo tempo entender e melhorar essa situação porque é chato não ter com quem conversar sobre livros.
A importância da leitura em uma história de cinema
Nada mais apropriado do que começar falando de um livro. No caso, o último que li.
Especulações cinematográficas, de Quentin Tarantino, é uma leitura leve, com muitos momentos engraçados e boas tiradas. É ótimo para quem gosta dos seus filmes, de cinema e anda com dificuldades para pegar uma leitura de jeito.
Mas meu ponto aqui é puro pragmatismo.
Ler ajuda a ganhar dinheiro.
O causo é sobre Steve McQueen, um dos maiores astros do cinema das décadas de sessenta e setenta, que deve muito de seu sucesso a sua primeira esposa, Neile Adams.
Além de bom ator e bonitão, há um elemento fundamental que colocou McQueen acima de tantos atores talentosos. Ele sempre atuou nos melhores filmes. Uma habilidade que ele deve à Neile.
Segundo Tarantino, McQueen odiava ler qualquer coisa que não fosse sobre carros, armas ou motores.
Então, quem lia os roteiros e selecionava os melhores papéis para o ator era sua esposa.
Neile tinha duas características fundamentais para isso. Conhecia o marido e sua verve de astro como ninguém, além de ser capaz de ler muito e bem.
Se não fosse a mulher leitora, Steve McQueen talvez não tivesse participado de tantos filmes que o colocaram e o mantiveram no topo de Hollywood.
Se você é o tipo que precisa de uma utilidade para qualquer coisa.
Escolher os melhores roteiros para a sua vida é um bom motivo para começar ou voltar a ler.
Mas por que as pessoas leem cada vez menos?
No fundo, já sabemos a maior parte das causas.
Falta hábito e incentivo, somos um país com baixo investimento em educação, os livros são caros, o digital tomou conta de tudo e cada vez mais as pessoas são incapazes de manter o foco por mais de quinze segundos. Logo, elas não dão a mínima para os livros porque não querem ou porque não conseguem mesmo.
É fácil culpar as redes sociais até porque elas têm muita culpa mesmo. Mas as plataformas querem engajamento e se as pessoas só reagem ao que assistem, elas seguem essa lógica. Até a maior rede profissional do mundo se dobrou a onipresença do vídeo (ainda permite a newsletter, apesar da visibilidade para textos ter caído muito nos últimos anos).
Se a questão fosse só o meio, temos os livros digitais. Mas não é só isso, já que a pesquisa considera a leitura ou, no caso, a não leitura também nesse formato.
Entre 2019 e 2014, ainda enfrentamos ao mesmo tempo uma pandemia, que corroeu a renda das pessoas, e seguidos anos em que o conhecimento e a cultura foram institucionalmente atacados, apodrecendo de vez a já frágil estrutura educacional do país.
Falta tempo!
Essa é, disparada, a principal justificativa para ler menos.
47% em 2019 e 46% das pessoas em 2024 usaram essa desculpa.
Mas convenhamos. Na prática, não ter tempo significa que a leitura não é prioridade.
Se somarmos quem diz não ter tempo com quem afirma que não lê “Porque prefere outras atividades (9%)”, “Porque não tem paciência para ler (8%)” ou “Porque se sente muito cansado para ler (7%)”, concluímos que para 70% das pessoas a leitura não é uma opção de lazer, nem para relaxar, nem como complemento da atividade profissional.
Lembro de uma vez que me chamaram no trabalho para me dar um toque: talvez fosse melhor eu parar com a mania de ler jornais pela manhã para não dar a impressão de que não estava fazendo nada.
Como assim não estava fazendo nada? Estava lendo os jornais do dia!
Na época, era editor de conteúdo e o escritório recebia os quatro principais periódicos do país, mas sujar a mão no papel para ler as notícias do dia e/ou buscar referências já não era bem-visto nas primeiras décadas dos anos 2000.
O que quero dizer com isso? Apesar da debandada de leitores ter se intensificado nos últimos anos, ela é um processo antigo, como aponta o Diretor Comercial da Planeta, Gerson Ramos:
“O declínio do número de livros lidos por ano (pág. 32) mais uma vez demonstra a relevância da depreciação dos investimentos em Educação e Cultura verificada de 2016 até 2022, quanto até mesmo o Ministério da Cultura foi extinto. (…). Quando analisamos as faixas de escolaridade, nos deparamos com o despropósito de que quanto maior a escolaridade, maior é a diminuição da quantidade de livros lidos por ano. Leitura não é mais ferramenta de formação?
Não é que as pessoas não têm tempo para ler.
É pior, elas acham que ler é perder tempo.
Não encontramos prazer
Segundo a filosofia, uma das coisas que move o ser humano é a busca pelo prazer. Pergunte ao Clóvis de Barros Filho!
Na psicanálise, Freud apontou o “princípio do prazer” como uma das forças motrizes do comportamento humano, especialmente em busca da satisfação de desejos inconscientes.
Mas, de repente, lembramos da aula de literatura que nos enfiava livros difíceis só porque caia no vestibular e, em vez de desenvolver o gosto pela leitura, cultivamos medo, angústia, terror ou aversão.
Se fôssemos estimulados ao prazer desde a infância, depois de crescidos qualquer pessoa saberia buscar um livro que gosta. Mas fica difícil identificar qual tipo de leitura nos envolve se não lemos. É como perguntar a um padre qual é sua posição sexual preferida.
E se a permanência na escola deveria ser um diferencial para formar leitores, parece que isso também não tem ocorrido como antes.
A queda também se dá nos estratos de quem tem mais escolaridade. Entre 2019 e 2024, houve 5% menos leitores tanto na faixa de pessoas com ensino superior (68%-63%) quanto naquelas que possuem o Fundamental II (54%-49%).
Tenho a sensação de que quando digo que leio, a pessoa já pensa: nossa, esse gosta de sofrer.
Um papo me remete ao deprimente documentário do Neymar e uma cena que deve estar no primeiro episódio (não consegui ir muito longe na falta de assunto do craque).
É uma imagem emblemática. Na comemoração do aniversário de filho, o jogador faz uma pegadinha com o garoto: uma caixa cheia de livros de presente! Neymar ri enquanto o garoto desembrulha aquele monte de livros com cara de frustração até chegar a verdadeira surpresa (acho que era um patinete).
Cheguei a me perguntar o que fizeram com aquele monte de livros depois, mas tem coisa que é melhor não saber.
Mas descrevi a situação para ilustrar outro ponto da pesquisa e não minha birra com Neymar.
O livro é caro no Brasil. Mas até quem pode pagar, desdenha do investimento. E olha que as pessoas gastam com copo Stanley, Air Fryer e mais um monte de quinquilharias.
O declínio da leitura é democrático, não escolhe classe social. Na Classe A, o percentual de queda de 5% do número de leitores é maior do que na B e na D/E.
As pessoas não leem porque não sabem que é possível se divertir por meio dos livros.
Então, o que resta na busca pelo prazer é assistir um monte de séries sem graça e filmes ruins.
Perdemos o romantismo
Não é porque escrevo na véspera do show do Roberto Carlos que cheguei a essa conclusão.
Até porque o Último Romântico é o Lulu Santos.
Mas vamos combinar que as pessoas estão muito mais funcionais, práticas, convenientes. No mau sentido.
Sem romantismo, ficamos menos criativos.
Se olhamos só para benefícios materiais, a capacidade de imaginar, inventar e criar tende a desaparecer.
Ler exige esforço. Mas não é por isso que as pessoas hoje passam longe dos livros.
Por exemplo: olha a quantidade de gente que pratica esporte. E não é qualquer esporte. Tem maluco que acorda quatro da manhã para se arrebentar no crossfit ou treinar para maratona.
A modalidade que surgiu na Grécia antiga e que, na história original, termina com a morte do rapaz que corre os 42 quilômetros durante a Batalha de Maratona (desculpe o spoiler, mas treinar para maratona é muito mais extenuante do que ler).
Fazer qualquer atividade física feita com regularidade é difícil.
Você tem que ter tempo ou encontrar tempo para isso. É preciso se concentrar e, às vezes, dá uma enroscada. Em outras, flui às mil maravilhas. Como a leitura.
Tanto ler quanto praticar esportes traz benefícios para a saúde.
A diferença é que os resultados do físico são aparentes. A mudança é perceptível a olho nu.
Na leitura, a mudança é interna. Às vezes, a gente demora para perceber.
Então, quem se importa?
Nem todo mundo está disposto a se esforçar pelo que não traz ganho imediato de imagem.
Esporte é ótimo e não vivo sem. Mas ler é fortalecer a alma.
Só que alma não é instagramável e o fato de considerar sua existência já faz de você um romântico ou um leitor, sendo que uma coisa não exclui a outra.
A leitura ficou esnobe?
Hora da mea culpa? Talvez.
Mas mesmo com as inúmeras causas já pontuadas, vale se perguntar: poderíamos ter feito um trabalho melhor para incentivar a leitura? É possível.
Será que a grande Falha de Comunicação está aí? Em vez de comunicar para despertar a consciência das pessoas, os leitores se tornaram ativistas chatos e moralizantes, como acontece em outros temas?
Será que viramos Zé Regrinhas da leitura?
Como se pode constatar pela pesquisa, dizer para as pessoas que gostam de reality show “pare de ver Big Brother e vá um livro” não ajudou a disseminar os benefícios da leitura.
Até porque, acredite, é possível ler e gostar de TV aberta, videogame, futebol, dorama e o que mais estiver disponível para o entretenimento e o prazer.
Em vez de ostentar a leitura como um traço de superioridade, talvez seja melhor explorar como são legais as coisas que lemos e o que aprendemos ou investir o tempo para ler boas histórias para as crianças.
As experiências em outros países mostram que é possível. Afinal, eles também têm Internet.
Na Alemanha, o analfabetismo funcional é um problema. Mas campanhas como a Dekade für Alphabetisierung” (Década para Alfabetização, 2016-2026), programas educacionais e o envolvimento de empresas, com treinamentos e programas de leitura para funcionários tentam reverter o quadro.
Em Portugal, funcionou uma abordagem de ensino direcionada para a leitura. A Suécia revisou suas estratégias, reintroduzindo métodos fonéticos e estruturados no ensino da leitura para elevar os índices de leituras entre as crianças.
Já a Polônia, fez reformas educacionais focadas no ensino explícito de fonética e leitura desde os primeiros anos escolares.
Portanto, a boa notícia é que a nossa decadência não é irreversível.
Sou Rodrigo Focaccio, consultor de comunicação e Top Voice LinkedIn em 2019.
Trabalho com treinamentos corporativos, estratégia e produção de conteúdo no LinkedIn para a comunicação de empresas e executivos.
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